O homem que ultrapassou o tempo

Cronicando

O homem que ultrapassou o tempo

 “A Fórmula 1 não poderá mais ser a mesma depois desse fim de semana”.

A frase reverberou antes do silêncio. Soou como profecia, sussurro do destino ou aviso do céu. Era Ayrton Senna quem a dizia, num instante anterior ao abismo. E depois do abismo, tudo mudou.

Na manhã do 1.º de maio de 1994, a eternidade pisou fundo no asfalto de Ímola. Aos 34 anos, partia o homem que não conhecia curvas no espírito, que enfrentava as tempestades da pista com a coragem dos antigos heróis e o coração voltado para o alto.

Senna não foi apenas o piloto que fez do capacete amarelo um símbolo. Foi partícula de pátria acelerando nas veias de um povo inteiro. Um Brasil sofrido, mas vibrante. Um Brasil que se levantava cedo para vê-lo voar sobre o impossível, com olhos úmidos e esperança renovada. Ele não guiava apenas máquinas — conduzia a alma de uma nação.

Não vencíamos só corridas. Vencíamos a descrença, a pobreza do espírito, o sentimento de inferioridade. Senna nos devolveu a certeza de que ainda sabíamos ser grandes, mesmo quando tudo parecia pequeno.

Naquele circuito que levava o nome de Enzo e Dino Ferrari, não se deu apenas um acidente. Deu-se uma ascensão. Ayrton não bateu — ele foi elevado. E talvez Deus o tenha recebido como quem acolhe um guerreiro cansado, mas vitorioso. Um homem que ousou correr não só para si, mas por todos.

       E ele correu bem. Com uma fúria limpa, com uma fé inabalável. Dizia que sentia Deus nas voltas perfeitas. Que havia momentos em que não pilotava mais , era conduzido por algo maior.  E foi assim que viveu. Não bastava vencer. Era preciso significar.

       Hoje, 31 anos depois, o mundo ainda se curva diante da sua memória. Não há calendário que apague sua presença. Seu legado não se mede em troféus, mas em lágrimas sinceras, em crianças que se inspiram, em adultos que voltaram a sonhar. Ele ensinou que os verdadeiros vencedores não são os que chegam primeiro, mas os que não desistem da jornada.

       Na corrida pela vida, Senna sempre esteve à frente — não pela velocidade, mas pela intensidade com que viveu. Acelerou com humildade, chorou com dignidade, venceu com compaixão.

       E se ainda hoje ouvimos o ronco de um motor, é possível que seja ele, em algum lugar entre o céu e a eternidade, dando mais uma volta na pista infinita da nossa saudade.

       Porque alguns homens passam. Outros permanecem correndo dentro da gente.

Luiz Gonzaga Fenelon Negrinho é advogado e cronista. (luizgfnegrinho@gmail.com)