Curral humano
Cronicando

Então os homens que determinam e mandam no município se reuniram — em estado de emergência e comoção social, conforme noticiado — para averiguar por que um boi se destrambelhou e saiu de seu estábulo, rompendo o confinamento no Parque de Exposições, em Passos, cidade-polo da região.
Prefeitura, dirigentes do Sindicato Rural, Polícia Militar, técnicos de segurança e, claro, os habituais aspones. Holofotes acesos, café servido, semblantes solenes. Tudo muito bonito, razoável e compreensível. O boi fugiu, sim, e colocou a multidão em perigo. Um risco real que não se nega. Mas o que se questiona é o foco, a prioridade, o peso desigual dado aos fatos.
Por que essas mesmas autoridades não se reúnem — sob os mesmos holofotes, com os mesmos cafezinhos e ares-condicionados — para saber por que aquela criança continua no sinaleiro, às altas horas da noite, vendendo balas para levar uns trocados para casa? E ai dela se não levar. O castigo vem de quem deveria proteger.
Por que ninguém se mobiliza, com igual ímpeto, para averiguar o motivo de tantas meninas — ainda quase crianças — estarem se prostituindo em troca de objetos vis, perdendo a infância cedo demais, no abandono de um Estado omisso e de uma sociedade conivente?
O boi rompeu a cerca e causou tumulto. Mas essas crianças, todos os dias, também fogem de seus currais simbólicos — os da miséria, do abandono, da violência — e ninguém aciona alarme. Ninguém se choca. Ninguém instala força-tarefa. São crianças que deixam necessariamente a escola, por fome, por medo, por falta de afeto ou simplesmente por invisibilidade.
Há nelas um grito mudo, um pedido de socorro não protocolado. Não se faz audiência pública por elas. Não se fecha rodovia. Não se move a engrenagem estatal. Continuam ali: nas calçadas, nas esquinas, entre os carros. Sem cerca, sem rumo, sem infância.
E o mais estarrecedor é que boa parte da sociedade normalizou essa tragédia. Olha, mas não enxerga. Lamenta, mas não age. Julga, mas não se responsabiliza.
Quando um boi assusta uma multidão, vira manchete. Quando a infância é assassinada todos os dias diante de todos, ganha silêncio.
Essa é a real inversão de valores: uma comoção legítima por um animal — enquanto crianças humanas seguem relegadas, sem proteção, sem escola, sem dignidade. Um curral humano a céu aberto, onde vidas frágeis esperam, em vão, por libertação.
E se não houver um grito, um gesto, um levante — continuaremos assim: cercando bois, enquanto os filhos do povo sangram no asfalto.
Luiz Gonzaga Fenelon Negrinho, advogado e cronista, escreve aos domingos nesta coluna. (luizgfnegrinho@gmail.com)